Durante décadas, crianças desnutridas em todo o mundo foram tratadas com uma dieta de alimentos ricos em proteínas e altamente calóricos.

Essas comidas podem ter várias formas – de pasta de amendoim a milkshakes gordurosos -, mas a ideia geral é: restaurar rapidamente os nutrientes mais básicos para o corpo em crescimento.

Os “alimentos terapêuticos prontos para uso” ajudam a eliminar o risco imediato à vida da criança. Mas essa batalha está vencida apenas pela metade.

O período que uma criança fica desnutrida pode ser de apenas alguns meses, mas suas consequências poderão durar a vida inteira.

Durante toda a infância e adolescência, a criança permanecerá fisicamente atrofiada e mais suscetível a infecções. Ela também pode apresentar déficits cognitivos, resultando em um QI mais baixo – o que pode significar ficar para trás na escola e ter de lutar para encontrar emprego quando adulta.

Mas uma recente e inovadora pesquisa sugere que podemos estar negligenciando uma potencial solução: as dezenas de trilhões de bactérias “do bem” que vivem em nosso trato digestivo, a chamada microbiota intestinal, ou flora intestinal.

“Somos uma sublime mistura de partes humanas e microbianas”, diz Jeffrey Gordon, diretor do Centro de Ciência do Genoma e dos Sistemas Biológicos da Universidade Washington em St. Louis , nos EUA. E essas comunidades fervilhantes de aliados invisíveis são agora consideradas essenciais para a nossa saúde e bem-estar.

A flora intestinal é tão importante, que cientistas como Gordon geralmente se referem a ela como sendo um “órgão” separado.

De acordo com a teoria do especialista, muitas das consequências de longo prazo da desnutrição podem estar diretamente ligadas a uma desordem da microbiota intestinal. E, corrigindo esse desequilíbrio, você pode novamente colocar uma criança no caminho certo para seu desenvolvimento.

Financiado pela Fundação Bill e Melinda Gates, a pesquisa de Gordon tem liderado estudos pioneiros no Malaui e em Bangladesh para testar essa teoria. E os primeiros resultados parecem promissores.

Quanto mais ferramentas forem desenvolvidas para atacar o problema – e o mais rápido possível -, melhor: mais de 200 milhões de crianças menores de cinco anos sofrem atualmente de desnutrição.

Bactérias amigas

As sementes dessa nova descoberta podem ser encontradas em um estudo do médico sul-africano PM Smythe, publicado pela primeira vez no jornal científico The Lancet em 1958.

O exato papel dos micróbios intestinais em nossa saúde ainda era em grande parte desconhecido, mas havia uma percepção crescente de que era importante – e de que havia espécia “amigas”, que ajudavam a sintetizar nutrientes valiosos, e outras nocivas, que consumiam recursos antes que o “hospedeiro” pudesse absorvê-los.

Com isso em mente, Smythe decidiu examinar crianças com kwashiorkor – uma forma de desnutrição que normalmente resulta da falta de proteína, levando à retenção de líquidos ao redor do abdômem e a uma barriga visivelmente distendida.

O médico descobriu que o padrão de espécies ao longo do intestino era diferente para as crianças com esse tipo de desnutrição.

No estômago, por exemplo, ele encontrou várias espécies de bactérias que normalmente habitavam o intestino grosso. Isso sugere que um desequilíbrio na flora intestinal pode estar relacionado à perda de peso.

“A observação apoiou a hipótese de Smythe de que comunidades microbianas intestinais alteradas poderiam contribuir potencialmente para o quadro clínico de desnutrição grave”, explica Geoffrey Preidis, do departamento de pediatria da Universidade Baylor, no Texas.

Smythe também testou tratamentos para restaurar o equilíbrio correto, dando às crianças antibióticos para reduzir a colonização de bactérias nocivas e iogurtes probióticos que tinham como objetivo fazer com que as espécies úteis proliferassem no intestino. O resultado, ele relatou, foi uma recuperação mais rápida.

Esta foi apenas uma pequena tentativa de demonstrar essa relação entre a flora intestinal e a desnutrição. Uma posterior, que tentou replicar seu tratamento particular, não mostrou benefícios similares.

Cientistas como Smythe também foram limitados pela tecnologia de sua época. Eles só podiam identificar as espécies relevantes de micróbios colhendo amostras biológicas e depois cultivando as bactérias in vitro – um processo trabalhoso.

Avanços na triagem genética tornaram este processo muito mais fácil.

“Hoje, não precisamos cultivar bactérias para estudá-las – podemos determinar quais micróbios estão presentes em uma amostra apenas sequenciando seu DNA”, diz Preidis.

“Isso é importante porque a grande maioria dos micróbios intestinais é difícil de cultivar em laboratório.”

Proteção contra infecções

A disponibilidade de métodos de estudo fáceis levou, por sua vez, ao surgimento de novas pesquisas sobre as muitas maneiras pelas quais nossa flora intestinal pode influenciar nossa saúde.

Espécies de bactérias “boas” como Lactobacillus e Bifidobacterium podem reduzir a inflamação e fortalecer a barreira intestinal, por exemplo.

Elas também podem ajudar na digestão de carboidratos complexos e de proteínas.

Essas bactérias “do bem” também ajudam na produção e absorção de aminoácidos essenciais para o crescimento.

Dado que o cérebro em crescimento é um órgão que necessita de muita energia, esses benefícios podem ser essenciais para um desenvolvimento neural saudável.

Ainda mais importante, uma flora intestinal diversa pode fortalecer o corpo contra infecções causadas por shigella, listeria ou salmonela.

Isso se deve em parte à competição: as bactérias estabelecidas tornam difícil para os patógenos, os microorganismos capazes de provocar infecções, encontrarem um local seguro para continuar se multiplicando.

Um número maior de bactérias úteis – ou mais inofensivas – também pode estimular o sistema imunológico, o que também ajudaria no combate a infecções de espécies mais prejudiciais à saúde.

Se uma dieta pobre reduz essas defesas naturais, as crianças subnutridas podem rapidamente entrar em um ciclo vicioso, explica Jonathan Swann, professor associado de microbiótica do Imperial College de Londres.

“As crianças que são subnutridas geralmente vivem em ambientes onde são expostas a uma grande quantidade de patógenos”, diz ele. “E esse efeito aditivo de maior exposição ao patógeno e menor capacidade de eliminá-los leva a infecções mais persistentes, que podem causar diarreia prolongada e inflamação crônica do intestino. E isso, por sua vez, prejudica a estrutura intestinal e sua função.”

O resultado seria o aumento da desnutrição, levando a déficits cognitivos e ao retardo mental.

Pior ainda, também faltam os micróbios necessários para ajudar a digerir alimento que elas venham a receber.

“A flora não é capaz de terminar a digestão – então, primeiro, elas não têm comida suficiente e, quando comem, não conseguem digerir a comida que você dá a elas”, diz Didier Raoult, da Universidade Aix-Marseille, que estuda a desnutrição kwashiorkor.

Ajuda da família

Existem diversos mecanismos por meio dos quais uma flora intestinal empobrecida poderia contribuir para os efeitos prolongados nocivos da desnutrição a longo prazo. O desafio para Gordon, pesquisador da Universidade Washington em St. Louis, tem sido estabelecer evidências mais diretas de que um provoca o outro.

Boa parte de sua pesquisa foi realizada na cidade de Dhaka, em Bangladesh, e no Malaui, na África oriental. O cientista trabalha em cooperação com os médicos e enfermeiros locais e com as famílias das crianças afetadas que, apesar de suas dificuldades, devem fazer visitas regulares ao hospital para contribuir com o projeto.

“A devoção das mães pelos filhos é enorme nesses locais”, diz ele. “E a confiança que eles têm nos provedores de saúde é extraordinária e verdadeiramente inspiradora”, diz.

Um desses estudos envolveu a coleta mensal de amostras fecais de crianças que sofreram períodos de desnutrição aguda.

Usando um algoritmo avançado para sequenciar material genético dentro da amostra, a equipe identificou 24 espécies-chave que pareciam estar associadas a um crescimento saudável e comparou sua abundância nos dois grupos.

Eles descobriram que a flora intestinal de crianças saudáveis evoluiu com o tempo, enquanto a das desnutridas parecia permanecer em um estado “imaturo”, com menos diversidade e menor capacidade de produzir e absorver os nutrientes de que necessitavam em cada estágio do crescimento.

Os alimentos terapêuticos padrão não conseguiram reparar o equilíbrio a longo prazo. “Então as crianças estavam crescendo com um persistente problema de desenvolvimento afetando seu ‘órgão microbiano'”, diz Gordon.

Para provar as consequências nocivas de longo prazo disso, o pesquisador fez um experimento com um grupo de camundongos “gnotobióticos”, com condições extremamente estéreis, para que seus corpos não tivessem uma flora intestinal.

Ele “implantou” nos animais uma flora intestinal semelhante à de crianças com déficit de alimentação, mas que não chegaram a desenvolver os sintomas de desnutrição. Isso permitiu que os efeitos da diversidade microbiana sobre o crescimento e o desenvolvimento de longo prazo fossem isolados e identificados, controlando todos os outros fatores.

Em um dos primeiros artigos a usar essa técnica, Laura Blanton, estudante de pós-doutorado orientada por Gordon, mostrou que os camundongos que recebiam as amostras das crianças desnutridas apresentavam um crescimento retardado em comparação com aqueles que recebiam as amostras das crianças mais saudáveis. Isto confirmou a ideia de que a flora desequilibrada pode ser uma causa dos problemas de desenvolvimento em longo prazo.

A equipe de Gordon encontrou recentemente resultados semelhantes usando porcos “gnotobióticos”, cuja biologia é ainda mais próxima à do corpo humano.

Essas descobertas já foram amplamente aclamadas, ajudando Gordon a ganhar a prestigiosa Medalha Copley da Royal Society no início deste ano – prêmio concedido anteriormente a nomes como Dorothy Hodgkin, que decifrou a estrutura do hormônio insulina, e a Albert Einstein.

Mas ainda há muito trabalho a ser feito.

Preidis, por exemplo, ressalta que ainda precisamos entender a cadeia exata de eventos que leva o corpo de uma criança ao ciclo vicioso de desnutrição e infecção.

Cura pela comida

Mas, dadas essas fortes associações, a equipe de Gordon já está procurando possíveis tratamentos projetados para corrigir os desequilíbrios na flora intestinal das crianças e restaurar o crescimento saudável antes que seja tarde demais.

Esse projeto tem sido conduzido em Dhaka, mais uma vez com a colaboração da comunidade local, para identificar um alimento terapêutico que se adapte ao paladar da criança e da mãe, que seja culturalmente aceitável e potencialmente benéfico para a economia local.

Eles começaram examinando os alimentos dados às crianças durante o período de desmame, para ver se indicavam componentes que poderiam ser benéficos.

“Nossa hipótese é que, ao longo das gerações, as mães fizeram observações perspicazes ligando certos alimentos a um crescimento saudável”, diz ele.

“Queríamos extrair esse estoque de alimentos complementares acessíveis e disponíveis, como se procurássemos em uma biblioteca, para identificar combinações de ingredientes que poderiam reparar o desenvolvimento deficiente de comunidades microbianas em crianças desnutridas.”

A equipe então reduziu a lista para desenvolver novos alimentos terapêuticos e conduziu estudos de curta duração para testar sua eficácia em restaurar o desenvolvimento da flora intestinal.

Gordon discutiu alguns de seus primeiros resultados na reunião da Sociedade de Neurociência em Washington, em 2017, e sua equipe enviou recentemente um artigo a uma revista científica.

O médico tem receio de revelar muitos detalhes até que o estudo passe pelos rigores da revisão de seus colegas – um processo padrão no qual uma nova descoberta está sujeita ao escrutínio de outros cientistas. Mas ele confirma que eles parecem “promissores”.

A cautela de Gordon é compreensível. Os seres humanos passaram milênios lidando com o corpo humano, enquanto o estudo do nosso “órgão microbiano” invisível ainda tem um longo caminho a percorrer.

Estamos apenas começando a entender a importância desse “órgão” e as maneiras de estimular sua saúde em longo prazo. Mas, se os tratamentos atualmente em teste realmente funcionarem, eles podem ser um primeiro passo vital para aliviar o sofrimento de milhões de pessoas.

G1