Por que temos tanto medo de ser normais?, questiona a clínica geral inglesa Iona Heath, 69, escritora e ex-presidente do Royal College of General Practitioners do Reino Unido, na conferência de abertura do congresso de medicina de família e comunidade, em Cuiabá (MT).
Para ela, o medo está por trás do excesso de diagnósticos e de tratamentos, e leva ao aumento do consumo de remédios, o que impulsiona os lucros da indústria da saúde.

Karl Marx disse que a religião é o ópio do povo. Por séculos, foi assim. Você está mal, mas tem o paraíso, pode tolerar sua pobreza hoje. Agora temos os medicamentos fazendo esse controle, são o novo o ópio do povo, diz ela.

Na opinião de Heath, drogas deveriam ser usadas em situações onde são estritamente necessárias, porém, cada vez mais são utilizadas em doenças que nem existem, como pré-diabetes. Medicamentos no lugar e no momento certo são fantásticos. De outro modo, são um perigo.

PERGUNTA: A sra. diz que o medo está por trás do excesso de diagnóstico e de tratamentos? De que forma isso acontece?
IONA HEATH: O medo aumenta o consumo de assistência médica, o que impulsiona os lucros da indústria da saúde. Muitas vezes, o próprio cuidado médico cria mais medo.
Todo mundo tem medo de doenças graves e da capacidade de as mesmas em subverter e destruir esperanças e vidas. Por isso o medo, quase sempre não expresso de forma evidente, espreita em quase todos os sintomas, embora esses possam ser triviais.
O paradoxo resultante é que, enquanto as pessoas estão vivendo vidas mais longas e saudáveis, elas se tornam cada vez mais temerosas e preocupadas com a saúde. A ansiedade afeta a saúde e impede que as pessoas desfrutem e usem a saúde que têm.

P: E aí temos esse cenário de medicalização da vida.
HEATH: Sim, e definitivamente essa não é a solução. É uma tragédia. A medicalização sistemática do sofrimento humano comum se transformou em uma epidemia, que infla ativamente o medo. Problemas pessoais ou sociais são transformados em problemas médicos, como em casos de depressão leve.
Sintomas benignos são tratados como doença grave, como na síndrome do intestino irritável. Riscos são conceituados como doenças, como a redução da densidade óssea ou elevação da pressão arterial.
Quem trabalha no sistema de saúde tenta cuidar das pessoas mas não consegue fazer com que elas pensem mais sobre si mesmas, como lidar com seus problemas sem remédios. Não há espaço para lidar com a realidade da morte ou para as realidades solitárias de se viver com doenças ou incapacidades que mudam a vida.
Roosevelt declarou em seu discurso de posse em 1933 que a única coisa que temos que temer é o próprio medo.

P:Os médicos também sofrem o impacto desse medo?
HEATH: Não temos imunidade. Os médicos estão constantemente com medo de cometer erros e de perder um diagnóstico que mudará a vida do paciente. Eles querem acima de tudo não causar danos. Eles têm medo de deixar passar um problema sério e, quando as coisas dão errado, sempre carregarão um fardo de culpa.

P: A indústria da saúde estimula o medo?
HEATH: Sem dúvida. Há uma enorme quantia de dinheiro que vêm partir da inflação desses medos, muitos dos quais apoiados por boas pessoas que tentam impedir que pessoas morram de doenças horríveis, mas que sucumbem a um grau perigoso de pensamento positivista que, no fim, favorece os interesses das indústrias biotecnológicas e farmacêuticas.
O medo é uma oportunidade de negócio. Estamos observando um aumento absurdo na prescrição de antidepressivos, milhões em todo o mundo. Também vemos mais prescrições de antipsicóticos. Karl Max disse que a religião é o ópio do povo. Por séculos, foi assim. Você está mal, mas tem o paraíso, pode tolerar sua pobreza hoje. Agora temos os medicamentos fazendo esse controle, são o novo o ópio do povo.
Fala-se pouco sobre os efeitos colaterais dos medicamentos.

P: Por quê?
HEATH: Se as pessoas tivessem ideia do risco envolvido, pensariam muito antes de tomar tantos remédios sem necessidade. É a primeira vez na história que as pessoas estão sendo medicalizadas nesse nível. Vamos ter que esperar um tempo para ver as consequências e os efeitos nefastos a longo prazo disso, não só na saúde humana mas no meio ambiente também. As pessoas jogam os remédios na privada, no lixo, isso tudo vai para os rios, para a terra.

P: É possível viver sem remédio?
HEATH: Eu sou totalmente favorável aos remédios em situações nas quais são necessários, no caso de doenças graves e agudas, as pessoas podem ser salvas por eles. Mas a forma como temos tratado situações normais como se fossem doenças, aceitando limites cada vez mais estreitos para definir diabetes, hipertensão. Tristeza agora é depressão, medo da vida é depressão. Remédios no lugar certo são fantásticos, no lugar errado são perigosos.

P: Por que entre os médicos a prescrição de remédios é uma prática tão frequente?
HEATH: É um problema social. O médico acha que está fazendo o bem para o paciente. Isso nunca vai ser resolvido enquanto as farmacêuticas ganharem tanto dinheiro e a economia depender disso. Se elas vendem muitos remédios é ótimo para a economia, mas é um caminho ruim para sociedade. Precisamos ser cada vez mais cautelosos no uso de medicamentos. Isso é importante para idosos que são as principais vítimas do excesso de medicação. Tomam muitos remédios juntos, há interação entre eles e prejuízos.

P: A sra. tem alguma esperança de que as coisas possam ser feitas de forma diferente?
HEATH: Tenho. Deixar as coisas claras, transparentes, é o caminho para mudanças. Todo o sistema financeiro depende hoje da venda de mais remédios, mas isso não pode ir muito longe. Remédios aparentemente são soluções para sofrimentos, perdas, para a morte mas, além de não terem tais propriedades, ao final ainda cobrarão seu preço.

Iona Heath, 69
Médica inglesa graduada pela Cambridge University (1974). Trabalhou como clínica geral em Kentish Town (Londres) de 1975 a 2010 e presidiu o Royal College of General Practitioners entre 2009 e 2012. É autora de dois livros e coautora de outros 14 títulos

Fonte: Folhapress, por Claudia Collocci