Enquanto cientistas e empresas farmacêuticas corriam contra o tempo para criar, do zero, uma vacina contra o Zika vírus, o biólogo Alysson Muotri estava olhando para o outro lado.
A hipótese dele era de que remédios que já estão no mercado e são usados contra outras doenças poderiam também ser efetivos contra o Zika vírus, que causou alterações neurológicas em mais de 3 mil crianças no Brasil entre 2015 e 2017.
As evidências científicas apontam para a possibilidade de Muotri ter acertado em sua aposta. Em estudo publicado em janeiro na revista Scientific Reports, do prestigioso grupo Nature, a equipe de Muotri diz que o remédio Sofosbuvir, usado no tratamento de hepatite C, pode curar a infecção por Zika e impedir também a transmissão do vírus da mãe para o bebê durante a gravidez.
A pesquisa se dividiu entre a Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia, onde Muotri coordena o Programa de Células-tronco, e o Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Em ambos os laboratórios, os pesquisadores testaram o medicamento primeiro em minicérebros – estruturas obtidas a partir de células-tronco que emulam o funcionamento do cérebro – e, em seguida, em camundongos. Em ambos os casos, a taxa de sucesso foi de 100%, segundo o biólogo.
“Os minicérebros infectados com Zika responderam imediatamente ao Sofosbuvir. Nas primeiras 24 horas, as células pararam de morrer e voltaram a crescer novamente”, disse Muotri à BBC Brasil.
“Nos camundongos, a doença mata. Mas conseguimos que eles se recuperassem do estado terminal. E nas fêmeas, impedimos que o vírus chegasse até os fetos. Agora, estamos preparando os testes em humanos.”
Nos próximos três meses, a equipe deve testar o medicamento em pacientes de Zika no Equador, que enfrenta um surto da doença.
De acordo com o Ministério da Saúde brasileiro, desde outubro de 2015 até dezembro de 2017 foram confirmados 3.037 casos suspeitos de bebês com alterações no crescimento e desenvolvimento possivelmente relacionadas à infecção pelo Zika. Outros 2.903 continuam sob investigação.
A pasta afirmou que foram registrados 17.452 casos prováveis de zika em todo país em 2017 – uma queda de 92% em relação a 2016.
Mas especialistas ainda temem que um novo surto do vírus possa ocorrer, após a descoberta de que o vírus ataca cerca de 49% de uma população no primeiro contato – inicialmente se pensava que a taxa era de 80%.
Na prática, isso significa que ao menos metade da população brasileira ainda não foi exposta ao vírus e, portanto, não está imune.
O Levantamento Rápido de Índices de Infestação pelo mosquito Aedes aegypti divulgado pelo Ministério da Saúde em novembro de 2017 indicou que 409 municípios brasileiros estão em situação de risco de surto de dengue, zika e chikungunya.
No mundo, mais de 70 países registraram a doença e pelo menos 26 apresentaram casos de Síndrome congênita do Zika em crianças.
Cérebros em laboratório
A tecnologia dos minicérebros foi desenvolvida em 2013 por cientistas do Instituto de Biotecnologia Molecular da Academia de Ciências Austríaca, e tem sido usada desde 2015 para estudar os efeitos do Zika no desenvolvimento do cérebro dos bebês afetados.
Os cientistas usaram células-tronco embrionárias para reproduzir, em laboratório, tecidos que se desenvolvem como o cérebro humano em um embrião.
As estruturas criadas, que são do tamanho de ervilhas, chegam a alcançar o mesmo nível de desenvolvimento de um feto de nove meses, mas são incapazes de pensar e realizar outras funções do órgão.
“A tecnologia avançou bastante, mas ainda é um modelo simplificado, cultivado in vitro. Conseguimos ver como as células se desenvolvem e se organizam”, explica Muotri.
Em 2016, pesquisadores do Instituto D’Or, no Rio de Janeiro, demonstraram que o Zika vírus devasta as células-tronco cerebrais e causa uma redução drástica no crescimento do córtex, a camada externa do cérebro.
Para conferir a possibilidade de utilizar, em caráter urgente, drogas já existentes contra o Zika, a equipe de Muotri analisou em computador o genoma do Zika comparado ao de outros vírus mais conhecidos, para buscar semelhanças.
“Percebemos semelhanças com o vírus da Hepatite C e, por isso, começamos a olhar para esses medicamentos. Encontramos o Sufosbuvir, que atua na RNA polimerase – a enzima que o vírus usa para se replicar”, diz.
“Então a droga impede que o vírus se espalhe no organismo. A partir daí, começamos os testes nos minicérebros.”
Bebês camundongos a salvo
O passo seguinte foi testar o medicamento em camundongos infectados pelo vírus – com especial atenção às fêmeas grávidas.
“Quando você testa a droga nos minicérebros, vê o efeito do vírus diretamente no tecido cerebral de um feto. Mas quando ele está no ambiente intrauterino, quem toma o medicamento é a mãe. A substância tem que passar pelo metabolismo da mãe e ser processada para chegar até o feto. Por isso esses testes são cruciais”, explica Muotri.
Os pequenos camundongos, segundo ele, foram monitorados do nascimento até a fase adulta – período de cerca de quatro semanas – com uma tecnologia sensível, “que detectaria até mesmo uma partícula do vírus em suas células”.
Mas nada foi encontrado
Diferentemente de um medicamento completamente novo, que ainda precisaria passar por um modelo de testes com primatas antes de chegar aos testes com humanos, o Sofosbuvir pode passar diretamente para a última fase – o que aceleraria a chegada dele aos pacientes com Zika vírus. Isso porque o medicamento já é aprovado para o uso contra a hepatite C.
Quebra de patente
No Brasil, o tratamento com Sofosbuvir é oferecido no SUS e custa, por paciente, cerca de R$ 13 mil ao Ministério da Saúde, segundo a empresa americana Gilead Sciences, a fabricante do medicamento.
Em março de 2017, no entanto, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) se posicionou contra o pedido de patente do medicamento feito pela empresa.
A decisão final sobre a patente do medicamento ainda tem que ser tomada pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). Mas caso a empresa não receba a propriedade intelectual da fórmula, a produção de genéricos estará liberada.
Nesse caso, o Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos/Fiocruz) poderia produzir o medicamento nacionalmente.
“Acabamos de concluir o estudo de bioequivalência, que é necessário para comprovar que um medicamento genérico tem o mesmo perfil de ação e eficácia do que o medicamento da empresa. Fizemos esses estudos em pacientes internados e tivemos resultados positivos”, disse à BBC Brasil o presidente do Instituto, Jorge Mendonça.
“Agora, vamos esperar a decisão do INPI para entrar com o processo de registro do genérico junto à Anvisa.”
A fabricação do Sofosbuvir no Brasil pode fazer com que o preço do tratamento para o Ministério da Saúde caia pelo menos 50%, segundo Mendonça. A expectativa é que no segundo semestre, o genérico possa ser distribuído pelo SUS.
Pesquisadores da Fiocruz também investigavam o possível uso do medicamento contra o Zika vírus e, em agosto de 2017, publicaram na mesma Science Reports um estudo sobre o sucesso do Sofosbuvir em tratar camundongos infectados.
O estudo de Alysson Muotri, no entanto, vai além e comprova, de acordo com ele, o bloqueio da transmissão da mãe para o feto.
Mas mesmo com a possível produção de um genérico brasileiro do Sofosbuvir, Jorge Mendonça esclarece que ainda é necessária a comprovação de que a substância é eficiente contra o Zika em humanos antes de conseguir distribuir a droga para esse fim. Inicialmente, ela continuaria sendo fornecida apenas para tratar a Hepatite C.
Para ele, no entanto, a possibilidade é animadora. “Em termos de saúde pública, seria uma revolução”, afirma.
G1