A volta às aulas presenciais em todo o país é ação prioritária, urgente e imediata. Essa é a orientação do Conselho Nacional de Educação (CNE) que consta da resolução recém-aprovada para regulamentar o ensino nas escolas brasileiras no contexto da pandemia.
O documento, que seguirá para homologação do ministro da Educação, faz uma análise do que considera “a maior crise educacional já enfrentada pelo Brasil”, listando prejuízos impostos à educação em decorrência do prolongado fechamento das escolas, como retrocessos de aprendizado, problemas socioemocionais dentre estudantes e professores, explosão da evasão escolar e aprofundamento da desigualdade.
Relatora da resolução e presidente do conselho, a socióloga Maria Helena Guimarães de Castro, 74, alerta para o risco de que essa “situação de extrema gravidade” se traduza em “perdas socioeconômicas gigantescas para uma geração inteira de crianças e jovens brasileiros” e, consequentemente, para o país.
Ao jornal Folha de S.Paulo ela fala das novas regras e defende enfaticamente a presença dos alunos nas escolas não só para o aprendizado do conteúdo, mas também para a sociabilização e para o contato com a diversidade e o pluralismo de ideias. Mesmo no caso do ensino híbrido fora do contexto da pandemia, que deve ser regulamentado pelo conselho até o final deste ano, as atividades com mediação da tecnologia podem acontecer nas escolas, ressalta.
Maria Helena é, portanto, contrária à aprovação do ensino domiciliar, que está em discussão no Congresso Nacional e conta com o apoio do governo Bolsonaro. “Não consigo imaginar um aprendizado efetivo sem o ambiente da escola.”
Pergunta – A sra. foi firme ao apontar que é ilegal o ensino 100% online na educação básica fora do contexto da pandemia quando a Avenues anunciou que lançará uma escola remota para alunos a partir do 4º ano do ensino fundamental. Até quando as escolas terão respaldo legal para seguir com aulas à distância?
Maria Helena Guimarães de Castro – A Lei de Diretrizes e Bases da Educação [LDB] prevê que a educação fundamental deve ser obrigatoriamente presencial durante 200 dias letivos. Na pandemia, temos uma excepcionalidade que, no caso de 2020, foi regulamentada pela lei 14.040 e por uma resolução do Conselho Nacional de Educação, prevendo que as aulas pudessem ser remotas. Em 2021, o conselho terá a nova resolução para regulamentar a educação no período de contágio, permitindo atividades remotas complementando as presenciais, quando elas forem possíveis. Mas sempre considerando essa situação como excepcional.
A resolução indica como prioridade absoluta a volta às aulas presenciais, com o cumprimento dos protocolos e vacinação prioritária dos profissionais da educação. Também amplia a flexibilização dos currículos. Já havíamos definido o contínuo curricular 2020/2021. Isso significa que, em 2021, as escolas deveriam estar repondo os objetivos de aprendizagem de 2020 não oferecidos em decorrência da pandemia. Mas, com o fato de a maioria das escolas estar abrindo só no segundo semestre, criou-se a possibilidade de se entender até o final de 2022.
Isso não significa atividade remota. Significa que as escolas vão retornar às aulas presenciais, algumas ainda mantendo atividades não presenciais complementares, com a possiblidade de flexibilizar o currículo. Também orientamos a realização de avaliações diagnósticas presenciais, com recuperação que pode ser remota ou em conjunto com presencial.
O conselho tem defendido enfaticamente o retorno às aulas presenciais, ressaltando o aumento da desigualdade gerado pelo ensino remoto?
MHGC – Sabemos que nosso sistema de ensino é muito desigual, a maioria das escolas não está tendo atividade online por falta de estrutura e dificuldade de acesso de professores e alunos; 85% da educação básica brasileira é pública. Pesquisas apontam que as desigualdades aumentaram e muito [com o fechamento das escolas]. É preciso utilizar recursos do Fust [Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações] para ampliar o acesso à internet. Tem de haver uma política nacional, o que não temos, e uma articulação dos três níveis de governo, federal, estadual e municipal.
Imagine como estarão os alunos que vão fazer o Enem. No ensino médio, 87% são de escola pública. A maioria não teve acesso à conectividade. Alunos de escolas particulares terão condições muito melhores. A maior parte das vagas do ensino superior público acabará preenchida por alunos de escolas privadas. Isso já fazia parte da nossa realidade e agora piorou.
Nesse sentido, na hipótese de uma escola particular obter autorização para o ensino 100% online fora da pandemia, corre-se o risco de se aprofundar a desigualdade no país, uma vez que governos estaduais e municipais poderiam optar por oferecer ensino remoto?
MHGC – O primeiro ponto: não há a menor possiblidade de se autorizar [ensino 100% online]. A LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação] estabelece que a educação básica é presencial. E é assim no mundo inteiro. O segundo ponto é que o ensino remoto ampliou a desigualdade em todos os lugares, inclusive em países ricos. Vários estudos recentes, como os de Stanford e Harvard [duas das melhores universidades norte-americanas], mostram que as escolas, mesmo nos EUA, tiveram uma dificuldade enorme em se adaptar às atividades remotas.
E não é somente uma questão de conectividade, o ensino remoto tem limitações. Na Holanda e na Bélgica, por exemplo, países com alto desempenho no Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes], há pesquisas mostrando que, quando as escolas ficaram fechadas no ano passado, por dois meses, as crianças do ensino primário não aprenderam nada. Se não aprenderam nada lá, imagine no Brasil.
Há ainda estados e municípios que não retomaram as aulas presenciais. Pode-se pensar em um prazo limite?
MHGC – O Conselho Nacional de Educação é absolutamente a favor do retorno às aulas presenciais, mas não pode determinar um prazo porque estados e municípios têm autonomia. Muitos estão voltando. São Paulo, que já retornou gradualmente e tem a maior rede pública do país, vai voltar 100% presencial no segundo semestre. Outros estados, como Minas e Paraná, começaram a voltar.
Isso não significa que atividades online complementares deixarão de existir. Elas poderão ter um papel importante na recuperação. Na volta às aulas presenciais, os alunos poderão, por exemplo, ter atividades no contraturno com tecnologia. Isso não quer dizer que estarão fora da escola. Podem estar nos laboratórios. A aprendizagem híbrida, com atividades presenciais e com a mediação tecnológica, veio para ficar.
O conselho irá regulamentar o ensino híbrido fora do contexto da pandemia. Discute-se a flexibilização da carga horária presencial?
MHGC – O conselho não tem legitimidade para isso. Teria que haver uma discussão no Congresso Nacional. Eu, particularmente, sou contra qualquer mudança nessa direção. A educação híbrida, contudo, não depende só do número de dias presenciais. Pode, inclusive, ampliar a carga horária, compondo o tempo com atividades online ou offline. A BNCC [Base Nacional Comum Curricular; que estabelece diretrizes para a renovação pedagógica no país] prevê a ampliação da carga horária, e isso pode ser facilitado pelo ensino híbrido.
A partir de 2022, haverá o novo ensino médio, e as escolas terão que implementar no mínimo mil horas anuais, e não 800 horas com atualmente, sendo que 25% podem ser não presenciais. Pode-se ampliar a carga horária com o apoio da tecnologia, com o aluno eventualmente em casa, mas também no ambiente escolar.
Mais uma vez, a sra. reforça o papel do ambiente escolar e já deixou claro ser contrária ao ensino domiciliar, que tem apoio do governo Bolsonaro.
MHGC – A escola é um espaço de sociabilidade da criança e do adolescente, onde interagem com amigos, professores, conhecem pessoas diferentes, têm acesso ao pluralismo de ideias, à diversidade. Não consigo imaginar um aprendizado efetivo sem o ambiente da escola. O ensino domiciliar existe em mais de 80 países, e pouquíssimas famílias optam por isso. Os pais querem seus filhos na escola, com educação de qualidade.
RAIO-X Maria Helena Guimarães de Castro, 74
É presidente do Conselho Nacional de Educação. Possui graduação em ciências sociais e mestrado em ciência política pela Unicamp. Fez especialização em Avaliação de Políticas Públicas na Universidade de Grenoble, na França. Já atuou como secretária-executiva do Ministério de Educação (2016-2018), presidente do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) no governo Fernando Henrique Cardoso e como secretária de Educação de São Paulo (2007-2009). É embaixadora do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) para escolas no Brasil.
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