Naquele tempo o país saía de um período de ditadura militar, 20 anos durante os quais as liberdades dos cidadãos civis foram cerceadas de forma violenta. Estávamos no fim dos anos 80 e, quando começou a abertura do regime, pouco a pouco foram surgindo organizações não-governamentais dispostas a reunir vozes e ações, que tinham se calado durante os anos cinza, e convidá-las a sair da inação e começar a pensar e a tocar a vida, enfrentando os problemas, exigindo os direitos de quem paga imposto e segue normas.
Foi então, na nova Constituição de 1988, que surgiu a definição oficial de uma região que até então era bem menosprezada: o semiárido. Abrange oito estados do Nordeste- Alagoas, Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe – e Minas Gerais.
A questão principal do semiárido é, sempre foi, a seca. Enquanto estavam em mãos de políticos que só chegavam até ali em busca de votos, a expressão usual dos brasileiros que moravam na região era de que era preciso combater a seca. E isso era feito de maneira assistencialista, com a distribuição de carros-pipa, cestas básica ou sementes para plantar. Até que, em 1993, os sertanejos se rebelaram para valer e foram para os centros urbanos saquear, mostrar que estavam passando fome e que não podiam mais ficar à mercê de favores políticos.
Foi o início de uma mudança que ainda está em curso. No belo documentário “ConViver”, realizado pela ONG Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) e dirigido por Bruno Xavier, Roger Pires e Yargo Gurjão, há depoimentos de pessoas que aprenderam que bater em retirada não é a única forma de lidar com a seca da região. E que também não se deve esperar que pessoas que não vivem ali mandem, de Brasília, uma solução mágica para os problemas.
“Rompemos o paradigma do combate à seca e usamos agora a perspectiva de convivência com o semiárido. Pois até então tudo o que se tinha eram políticas de combate à seca com carros-pipa, frentes de serviço, distribuição de cestas básicas. E isso não respondia às necessidades e aos interesses dos movimentos sociais, das pessoas da região”, conta Carlos Humberto, do Fórum Piauiense de Convivência com o Semiárido de Picos, cidade do Piauí.
Uma das tecnologias que ajudou bastante nessa mudança de rumo do sertão foi a cisterna rural, uma solução quase simples, encontrada pela própria sociedade que vivia na pele a falta de água até para beber. Trata-se de um tanque ligado a uma calha que capta água da chuva do telhado e a armazena ali para ser usada nos tempos de escassez.
O Programa Cisternas foi considerado a segunda iniciativa mais importante do mundo no combate à desertificação pelas Nações Unidas. O prêmio foi entregue durante a 13ª Sessão da Conferência das Partes (COP 13) para a Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação realizada no dia 11 de setembro na cidade de Ordos, na Região Autônoma da Mongólia Interior, no norte da China.
Tive a chance de conversar com Manoel Apolônio de Carvalho,pedreiro baiano que criou o método das cisternas. Ele estava em São Paulo, trabalhando na construção civil, quando viu uma piscina e teve a ideia. Dividiu com amigos a possibilidade de fazer uma coisa parecida para armazenar água da chuva e viu, desse modo, sua criação se tornar uma tecnologia para livrar seu povo da seca. Tornou-se assim, tempos depois, um personagem de capa do caderno “Razão Social” que eu editei no jornal “O Globo” de 2003 a 2012. Manoel Apolônio tem um discurso ligeiramente ressentido, pois gostaria de ter sido reconhecido como inventor. Não é este a proposta, porém, da organização, que entende e aplaude o surgimento da ideia, mas agregou várias outras experiências que, no conjunto, fizeram dar certo.
“Característica marcante e diferenciada do Programa Cisternas é ter nascido no seio das experiências da sociedade civil, proposta como política pública de convivência com a região pelas organizações atuantes no Semiárido através da Articulação Semiárido (ASA) e assumida pelas gestões de Fernando Henrique, Lula, Dilma e, atualmente, Michel Temer, tornando-se, na prática, uma política de Estado”, diz o texto de apresentação do Programa no site da ASA.
No governo Lula, quando eu comecei a ter acesso às informações sobre as cisternas, foi conseguido um outro importante parceiro para o Programa das Cisternas, no setor privado.
Para além da importância de terem água nos tempos de escassez, outras criações no semiárido foram fundamentais para tirar do sertanejo o desejo de abandonar sua terra em busca de lugares prósperos. O Banco de Sementes Crioulas é uma delas, como conta Maria Francisca às câmeras do documentário “ConViver”:
“Hoje a tecnologia dá essa oportunidade de as pessoas produzirem sua verdura, sua fruta. Temos agricultores que têm verdura o tempo todo. O semiárido é o melhor lugar para se viver. Ninguém fica rico, mas para quê tanta riqueza material se o que se tem dá para viver bem?”
Talvez essa pergunta pudesse ser feita a um dos seis milionários que, segundo o relatório que a Oxfam Brasil acaba de lançar possuem riqueza equivalente ao patrimônio dos cem milhões de brasileiros mais pobres. Mas, aqui, nosso tema é outro, voltarei a falar sobre o relatório num outro post.
É, no mínimo, um conforto ouvir alguns dos depoimentos no documentário. Como o de Maria Perpétua Barbosa, da Agrovila Nova Esperança em Ouricuri, Pernambuco, que foi passar um mês com a filha, que mora em São Paulo, e voltou horrorizada com o fato de que, na mega cidade, não se consegue nenhum alimento sem dinheiro:
“Aqui não é assim, não. A gente não tem dinheiro, vai na roça pega um pé de aipim. Ou vai na roça, pega outra coisa qualquer, tira o óleo, prensa com farinha e dá para comer”, diz ela.
Sim, ainda existem problemas no semiárido, e não devem ser poucos. Mas há uma sensação de que as questões estão, ao menos, sendo percebidas de forma diferente, com um olhar mais atento pela própria população que se torna vítima. E este pode ser um caminho para a saúde social.