O Ministério da Saúde abriu uma consulta pública para avaliar mudanças em planos de saúde, por meio de uma proposta de política nacional de enfrentamento à pandemia da Covid nesse setor. Lançada neste mês, a medida, porém, cita pouco ações específicas voltadas ao tema e tem sido vista como controversa por especialistas -e, em parte, até mesmo por alguns representantes dos planos de saúde.
Atualmente, o país soma 48 milhões de usuários de planos de saúde de assistência médica, número que cresceu 1,8% no último ano e já é o maior desde agosto de 2016. Na prática, 24,7% da população tem hoje acesso à saúde suplementar. A proposta de elaborar uma política na área para a Covid-19 foi elaborada pelo Conselho de Saúde Suplementar, órgão que reúne ministros da Saúde, Casa Civil, Justiça e Economia.
Após ficar quase 18 anos sem reuniões, o conselho passou a ser reativado no fim da gestão de Michel Temer e início do governo Jair Bolsonaro, mas ainda com poucos encontros. Agora, teve atividades retomadas. O texto da proposta deve ficar em consulta pública até 18 de maio. Se aprovado, a ideia é que sirva como baliza para ações concretas que devem ser sugeridas em até 30 dias pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), responsável por regular a atuação das operadoras no país.
A proposta fala em integrar as ações da saúde suplementar no enfrentamento à pandemia, sem informar de que maneira isso poderia ser feito.
Em seguida, traz uma lista de 14 objetivos e diretrizes a serem seguidos na elaboração da política, com menção rápida a atendimentos no SUS, prazos “razoáveis” de contratos e previsibilidade de reajustes. Do total, porém, apenas um dos pontos é vinculado explicitamente à Covid.
Os demais são propostas pouco detalhadas, como “promover ambiente regulatório que fomente o aumento do acesso à saúde suplementar”, “garantir o atendimento à saúde em prazos razoáveis, condizentes às necessidades do paciente e aos contratos”, além de “contribuir para o desenvolvimento sustentável do setor de saúde privada do país”. Em documento divulgado na última semana, pesquisadores da UFRJ e da USP vinculados a grupos que estudam planos de saúde caracterizam a proposta como “integração reversa, na qual o SUS entra como coadjuvante”.
“No lugar de medidas para fortalecer o SUS e reduzir mortes por Covid, o governo decidiu atender velhas demandas do setor privado e lançar uma política para o crescimento do mercado dos planos de saúde”, aponta. Para Mário Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP, trechos abrem espaço para antigas demandas das operadoras, como a criação dos chamados “planos populares” ou “acessíveis”, de menor preço e cobertura menor do que o mínimo previsto nas regras atuais. “Os enunciados são muito gerais, mas reincidentes, e soam como mais uma tentativa de pautar mudança na legislação a partir da perspectiva das empresas”, afirma.
Ele cita como exemplo o trecho que fala em mudar regras para “aumentar acesso à saúde suplementar” e trazer atendimento em preços e prazos “razoáveis” de acordo com contratos. Atualmente, porém, regras da ANS já estabelecem prazos máximos para atendimento. “O que vimos na proposta de plano acessível vemos de novo, mas escrito de outra forma.” Outro ponto de preocupação, afirma, é um trecho que fala em estabelecer ações “que visem o desestímulo ao atendimento de beneficiários de planos de saúde no SUS, no limite das coberturas contratadas”.
Para Scheffer, a medida vai ao encontro de demandas das operadoras por mudanças nas regras de ressarcimento das empresas ao SUS por atendimento a seus usuários. “[O trecho aborda] como se as pessoas com planos de saúde optassem por usar o SUS indevidamente, quando usam por necessidade ou negativa de atendimento”, afirma ele, que lembra que a previsão de ressarcimento vale para serviços que estão dentro da cobertura dos planos.
A preocupação sobre a proposta é compartilhada por representantes de entidades em defesa do consumidor.
“O texto está vago, impreciso e parece uma armadilha. A impressão é que tenta usar a Covid para emplacar uma agenda antiga do setor de flexibilizar a regulação com o argumento de ampliar o acesso”, afirma Ana Carolina Navarrete, coordenadora do programa de saúde do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). “Também é como se apontasse que a solução para a pandemia são os planos, e não o SUS.” Para ela, é preciso saber como seria essa “integração” dos planos com o SUS. “O que vimos nos últimos meses foi que o setor privado se recusou a discutir [fila única de] leitos, não houve um plano de testagem e o reajuste foi mantido”, afirma, sobre a decisão adotada no último ano de apenas adiar os pagamentos.
O presidente da Abramge (Associação Brasileira de Planos de Saúde), Renato Casarotti, nega que tenha havido recusa do setor na discussão. “Havia visão equivocada de que tinha sobra de leitos. Mas em algumas regiões estavam até mais lotados que os públicos.” Sobre as propostas, ele diz ser favorável à maioria das medidas, mas questiona a relação com Covid. “Via de regra, são bons princípios e objetivos, mas vemos pouco ‘match’ com o olhar para a pandemia.”
Casarotti diz ver como positiva a abertura pra alguns temas, como regras de atendimento de usuários de planos no SUS e novos formatos de planos.
“Hoje, fico sabendo que uma pessoa usou um hospital público um ano e meio depois, quando a conta vem para a operadora”, diz. “Também já discutimos há um tempo a possibilidade de aumentar a segmentação.” Mas vê prazo curto para discussão. “Qualquer revisão num cenário conflagrado de pandemia, a chance de errar é maior”, afirma. “Debates estruturais precisam de mais tempo.”
Lígia Bahia, professora da UFRJ que estuda a saúde suplementar, questiona a falta de discussão prévia com o setor. “É uma proposta pouco transparente, que vem por cima e não ouve quem estuda e conhece.” Em nota, o Ministério da Saúde diz que, desde a criação da ANS, não houve uma política que “integrasse e monitorasse” as ações dos planos de saúde -daí elaborar a proposta, afirma.
Sobre a abertura para planos de menor cobertura, a pasta diz entender que “após 20 anos de criação da ANS, cabe uma análise da agência acerca do seu acervo regulatório oportunizando a redução dos preços de planos de saúde, sem qualquer alteração nos diretos garantidos”. Diz ainda que a proposta de desestimular o atendimento de planos de saúde no SUS visa “reforçar o direito de escolha do beneficiário do plano de saúde em ser atendido na rede pública ou na rede privada, caso deseje”.
Sem entrar em detalhes, o ministério afirma ainda avaliar que os critérios de reajustes “carecem de maior transparência e previsibilidade”. Já a ANS diz que não participou da elaboração da proposta, “não sendo possível antecipar as ações no processo de formulação e implementação da referida política, uma vez que não tem governança sobre o processo”. Antes das propostas serem apresentadas, a medida foi alvo de discussão em uma reunião do Consu transmitida pela Saúde.
Na ocasião, o ministro da Economia, Paulo Guedes, afirmou que o setor público é menos eficaz do que o privado e que o SUS não daria conta de atender a população nos próximos anos. O vídeo foi retirado do ar em seguida. Em março, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, também já havia citado, no Senado, a intenção de elaborar propostas por meio do conselho. “Queremos saber como é que está a disponibilidade de leitos na iniciativa privada, e que ela retire os pacientes dela que estão na rede SUS e leve para a sua rede, para que possamos atender os beneficiários do SUS.” Ele também defendeu que a vacina entre no rol da saúde suplementar. A medida, porém, não consta da proposta em consulta pública.
Folha Press