Superar a discriminação é mais difícil que lidar com o HIV. “O estigma vem junto com o vírus. Esse é o grande desafio da doença”, afirma o psicólogo Salvador Corrêa, 34, coordenador de treinamento e capacitação da Abia (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids).
Soropositivo há sete anos, ele descobriu que tinha HIV em um exame de rotina. O resultado caiu como uma bomba.
“Estava no meio do meu mestrado e fiquei completamente bloqueado. Tive que passar por um processo de elaboração, resignificando tudo, até meus próprios preconceitos”, diz.
Uma forma de “colocar para fora a angústia” foi criar um blog anônimo no qual escrevia um diário. O blog acabou se tornando o livro “O Segundo Armário” (Autografia/2011), que foi adaptado para o teatro e está em cartaz no Memorial Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro.
“A internet foi um grande apoio social para mim. Por meio do blog, muitas pessoas acabaram participando da minha vida mais que meus amigos e familiares. Elas conheciam minha verdade nua e crua, que eu não tinha coragem de revelar a ninguém. Foi um momento de potência de solidariedade muito grande”, afirma.
Maior prevalência é entre homens jovens
Mas nem sempre foi assim. Ele conta que já teve que encarar o primeiro preconceito logo após o resultado do exame. “Ao saber o resultado, fui acolhido por uma enfermeira, que, muito solidária, saiu do seu lugar de profissional de saúde e me abraçou. No entanto, na minha primeira consulta, a médica foi extremamente preconceituosa, me responsabilizando pela infecção”, afirma.
Para o psicólogo, existe uma tendência da sociedade em responsabilizar a vítima. “Quando você joga a prevenção para o âmbito individual, você tira a responsabilidade do que é social, coletivo e governamental”, diz.
“O vírus HIV é controlado, mas a discriminação, não. O vírus social é tão perigoso e talvez mais mortal que o biológico. Ele te impede de ter relações sociais, te expulsa de casa. Nunca sei qual vai ser a reação de uma pessoa quando revelo que tenho HIV”, completa.
Corrêa está dentro da faixa etária na qual o vírus mais avança no Brasil – homens entre 15 e 39 anos, segundo o infectologista Jean Gorinchteyn, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, em São Paulo. “Cerca de 70% dos homens infectados estão dentro dessa faixa etária. A taxa de incidência é de 52 para cada 100 mil habitantes”, afirma.
O médico ressalta que, embora a prevalência do vírus HIV no país seja maior entre homens, ele está crescendo entre mulheres de 15 a 24 anos. Segundo ele, neste ano, a incidência passou de 16 para 32 mulheres infectadas a cada 100 mil habitantes.
“Chama a atenção o crescimento da doença em grávidas. Nos últimos 10 anos, mais de 120 mil mulheres jovens descobriam conjuntamente o diagnóstico do HIV e a gravidez. Uma tragédia que poderia ter sido evitada”, afirma.
‘Pessoas bonitas não são associadas ao HIV’
Para o infectologista, o preconceito interfere na prevenção da doença. “As pessoas ainda olham os estereótipos. Veem pessoas bonitas e saudáveis e não associam ao vírus HIV. Realmente, essas pessoas não têm a doença, a Aids, mas podem ter o vírus, inclusive, muitas vezes, até a própria pessoa desconhece que o tem”.
Corrêa, que também trabalha na área, acredita que, para alcançar a população mais afetada pela epidemia, é preciso realizar um trabalho de prevenção nas escolas. “O jovem não está tendo mais acesso a informação como tinha antes e, quando tem, é informação equivocada vinda de fake news. Além disso, vive em uma sociedade em que não se fala sobre isso e ele desconhece a prevenção de uma forma combinada, que á e política do Ministério da Saúde”, afirma.
A prevenção combinada consiste em uso de preservativo, na PrEP (profilaxia pré-exposição) e na PEP (profilaxia pós-exposição) ao HIV, métodos oferecidos pela rede pública. “A ideia do Ministério é ofertar um leque de prevenção, incluindo a camisinha, mas não ficar restrito a ela, porque têm pessoas que não usam, não adianta dizer. Então, ela precisa ter acesso a outras formas de prevenção”, completa.
O infectologista concorda que os jovens não conhecem todas as formas de prevenção.“O jovem banaliza as prevenções em vários aspectos. Um deles é acreditar que a Aids tem tratamento e isso, na cabeça de alguns jovens, é como tratar uma infecção urinária ou pneumonia que em 10 dias está tratado. Isso está absolutamente errado”, explica.
‘A gente acha que nunca vai acontecer’
Corrêa contraiu o HIV por não ter usado, excepcionalmente, o preservativo. “Eu sabia que existiam formas de prevenção, como a PEP, utilizada após o contato com o vírus, mas acabei não fazendo uso porque a gente acha que nunca vai acontecer”, afirma.
Corrêa descobriu que tinha o vírus HIV antes de a doença se tornar sintomática. Desta forma, iniciou o tratamento com antirretrovirais precocemente e não desenvolveu a Aids.
Hoje, seu tratamento consiste em tomar dois comprimidos ao dia. No caso dele, os remédios não causam efeitos colaterais. “A única questão é ter que lembrar de tomar. Desde 2012, estou com a carga viral indetectável. Minha qualidade de vida é boa e não transmito mais o vírus”, afirma.
Ele explica que, quando se define o diagnóstico de HIV, são realizados vários exames, mas dois passam a ser constantes. Um é o CD4, que monitora a imunidade; o outro é o de carga viral, que mede a quantidade de vírus presente no sangue.
Após seis meses de uso diário de antirretrovirais, o vírus HIV tende a ficar indetectável no sangue, segundo ele. “Isso significa que você deixa de ser um potencial transmissor”, diz.
País é pioneiro em tratamento para HIV
Desde 2013, o Brasil adotou a política “testar e tratar”, para que as pessoas deixem de ser potenciais transmissoras, realizando assim a prevenção da doença. “Quando o vírus está indetectável, existe uma qualidade de vida maior porque ele não está atacando as células de defesa. Mas você não deixa de ter o vírus. Ele fica incubado, escondido no que se chamam reservatórios virais, um espaço dentro da célula no qual o medicamento não consegue entrar, mas o vírus não consegue sair dali também”, explica.
De acordo com o psicólogo, o Brasil é um dos países pioneiros em garantir o direito à vida a todos que têm o HIV. “Ou seja, a pessoa com HIV no Brasil consegue se tratar totalmente de forma gratuita no SUS, que inclui consulta, exames, medicamento, sessão com psicológico, o tratamento de forma integral. Essa é uma das principais conquistas que temos no país”, diz.
“Falta ampliar o debate sobre prevenção e há muito o que avançar no campo do tratamento, para que se incorpore novos medicamentos com menos efeitos colaterais. E ainda melhorar a qualidade da assistência, com serviços que não estigmatizem nenhum grupo social”, acredita.
O HTLV foi o primeiro retrovírus humano identificado, em 1980. Esse conhecimento contribuiu para a rápida identificação do HIV, segundo retrovírus humano detectado, como agente causador da epidemia de Aids que emergiu em seguida. Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a gravidade e grande disseminação do HIV tiraram o foco do HTLV
Fonte: R7