O Ministério da Saúde comprou sem necessidade quase R$ 32 milhões em preservativos femininos no auge da pandemia de Covid-19. A constatação é de relatório publicado pela Controladoria-Geral da União (CGU).
Além disso, as compras foram feitas de uma empresa que, meses após o fechamento do contrato, foi investigada pela CPI da Covid (veja mais abaixo). No entanto, ela não foi investigada pela CPI por causa dos preservativos.
Segundo a auditoria da CGU, o ministério realizou licitações e comprou 10 milhões de preservativos femininos de látex ou borracha entre setembro de 2020 e setembro de 2021.
Só que, segundo a CGU, naquele momento, o ministério tinha em estoque pouco mais de 8,5 milhões de preservativos femininos — adquiridos ainda em 2019. Esses itens são distribuídos.
Ao longo de 2021, 7,9 milhões de preservativos distribuídos ainda eram do contrato anterior — apenas 10,8 mil foram dos novos. Só em fevereiro de 2022 é que os itens adquiridos em 2020 começaram a ser efetivamente distribuídos. Apenas 3,8 milhões deles ao longo daquele ano.
De acordo com a CGU, essa ação evidenciou falha no planejamento do ministério, ainda mais em um momento crítico, como o auge da pandemia.
“Espera-se que, a partir dos resultados obtidos neste trabalho de auditoria, o Ministério da Saúde planeje de forma mais assertiva suas aquisições; atue com mais transparência na priorização das compras de insumos e maior racionalidade na otimização da utilização dos recursos públicos e no dimensionamento das reais necessidades de abastecimento e distribuição”, escreveu a CGU no relatório.
A controladoria também recomendou que o ministério “seja tempestivo no acompanhamento dos contratos e na aplicação e cobrança de penalidades aplicadas”.
O relatório também afirmou que as constatações da CGU podem virar um processo administrativo, se forem identificados indícios de irregularidade por parte de algum servidor. Por enquanto, não há nenhuma punição aplicada.
Procurado, o Ministério da Saúde respondeu que “vai analisar os apontamentos trazidos pela Controladoria Geral da União (CGU) sobre os contratos firmados na gestão passada”.
‘Contexto crítico’
Para a CGU, a compra não levou em conta o “contexto crítico” trazido pela pandemia.
“Há que se considerar o impacto que as restrições impostas à circulação de pessoas ocasionaram na necessidade efetiva de distribuição dos preservativos femininos adquiridos, além do fato de que diversas campanhas realizadas em épocas festivas comuns no calendário brasileiro, em que há um reforço na distribuição de preservativos, não foram realizadas ou não tiveram o efeito esperado em razão do cancelamento de alguns eventos, como Carnaval e Reveillon”, diz o relatório.
Os auditores destacam que, ao determinar a compra, o ministério não fez qualquer ponderação “quanto à prioridade dessa aquisição em um quantitativo desarrazoado” e ” em meio a um cenário de combate a uma pandemia.”
Para efeito de cálculo, os auditores apontam que o valor gasto nos dois contratos firmados para a compra dos itens, de cerca de R$ 32 milhões, “equivaleria, por exemplo, a 19.938 diárias de leitos de UTI Covid.”
O relatório aponta que o ministério não explicou a origem do consumo médio mensal dos preservativos utilizado para o cálculo da compra, de 3,5 milhões de preservativos femininos – parte do consumo seria atingida com itens comprados também pelos governos locais.
Na prática, diz o documento, o consumo médio mensal em 2019 foi de 782,3 mil e, entre janeiro e setembro de 2020, de 931,4 mil, pouco mais de um quarto do valor utilizado para as compras.
Para os auditores, “os dados que apoiaram a necessidade da licitação foram superestimados, sem o memorial dos cálculos dos quantitativos de preservativos femininos e sem a apresentação da documentação que lhes deu suporte no processo licitatório”.
Empresa posteriormente investigada na CPI
Uma das duas empresas cujos contratos foram analisados pela CGU neste caso é a Precisa Medicamentos, que atuou como representante de uma empresa indiana. O contrato analisado também foi alvo de alerta por parte do Tribunal de Contas da União em 2022, que viu irregularidades em quatro contratos firmados pela empresa com o ministério entre 2018 e 2021.
A Precisa foi investigada pela CPI da Covid pela assinatura de contrato para fornecimento da vacina Covaxin. À época, a comissão afirmou que houve pressão pela importação da vacina dentro do Ministério da Saúde, com falhas graves no contrato, preço mais elevado do que de outras vacinas contratadas no país e pedidos de pagamento antecipado na compra.
O relatório aprovado pela CPI indiciou a empresa por ato lesivo à administração pública e um dos sócios por falsidade ideológica, uso de documento falso, fraude processual, fraude em contrato, formação de organização criminosa e improbidade administrativa. Tanto a empresa quanto o sócio negam irregularidades.
Problemas no preço e nos documentos
A CGU também analisou os preços utilizados nos contratos e identificou problemas no cálculo utilizado. As compras incluíam tipos diferentes de preservativos – de látex, mais baratos, e de borracha nitrílica ou poliuretano, mais caros.
O cálculo do valor de referência, no entanto, foi feito utilizando uma média das cotações de ambos os tipos e sem diferenciá-los. Segundo os auditores, isso elevou o preço dos preservativos mais baratos – o que não causou impacto no preço final, mas pode ter causado “distorções prejudiciais à competitividade”, conforme o documento.
Outro ponto destacado na auditoria envolve a verificação das condições de participação das empresas, especificamente a análise de documentos. Segundo os auditores, não há evidências de que o ministério tenha analisado corretamente o que é exigido em termos de documentos dos sócios majoritários das empresas contratadas. Papeis em língua estrangeira também foram utilizados sem tradução juramentada, segundo os auditores.
“Falhas na diligência das análises da documentação de habilitação, com a não observância das exigências do edital, podem ter afrontado o tratamento isonômico e impessoal a que devem ser submetidos os licitantes e ocasionado o favorecimento de empresas sem que preenchessem todas as condições jurídicas de contratar com a administração pública”, diz o texto.
Atrasos
A auditoria analisou o cumprimento do contrato e identificou atrasos na entrega dos preservativos que chegaram a mais de 5 meses. Uma das entregas, prevista para janeiro de 2021, só aconteceu em maio. outra, prevista para março, só foi disponibilizada ao ministério em julho daquele ano.
Os auditores destacam que as cobranças para entrega eram feitas apenas após a entrega, “perdendo assim qualquer efeito de pressão sobre a empresa para que efetuasse as entregas o quanto antes”, segundo a CGU.
Para o órgão de controle, o ministério também foi lento em aplicar as multas previstas no contrato às empresas pelos problemas encontrados. “Decorridos cerca de 18 meses desde o fim da vigência dos Contratos (…), nenhum valor a título de multa foi ainda efetivamente cobrado pelo Ministério da Saúde”, diz o texto.
Garantia sem validade
Os auditores também destacaram que a Precisa Medicamentos – uma das empresas contratadas – apresentou uma garantia que não poderia ter sido utilizada. A garantia, aliás, já havia sido alvo de investigação na CPI da Pandemia, já que a Precisa se tornou alvo da comissão pelo contrato para fornecimento da vacina indiana Covaxim. (veja abaixo)
Segundo a CGU, a empresa entregou a chamada garantia fidejussória – um modelo de carta fiança – de uma instituição “não bancária e que, inclusive, não estava cadastrada junto ao Banco Central do Brasil.” Mesmo assim, no entanto, “não consta no processo de contratação (…) nenhum despacho, nota técnica ou documento correlato que apresente uma análise sobre a aceitação dessa garantia.”
Na prática, descreve o relatório, o ministério eventualmente passou a exigir da empresa que a garantia fosse substituída por uma válida, mas a empresa não o fez até que, em novembro de 2021, alegou que isso não seria necessário após a entrega total dos objetos contratados.
Os auditores destacam que, apesar da Precisa ter sido instada a se manifestar sobre o tema e ter apresentado sua defesa prévia em processo administrativo em outubro de 2021, só em dezembro de 2022 a diretoria do Departamento de Logística do ministério decidiu multar a empresa pelo problema. Até abril de 2023, entretanto, a empresa ainda não havia sido sequer notificada da multa de cerca de US$ 60 mil.
G1