O Brasil tem 10 mil procurados pela Justiça há mais de 10 anos, mostra um levantamento do g1 no Banco Nacional de Mandados de Prisão (BNMP), que reúne ordens de prisão de todos os tribunais do país.

O número equivale a 3% dos 368 mil mandados de prisão que estavam vigentes no início de outubro, quando o g1 extraiu os dados do portal, mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Entre os mandados mais antigos, quatro foram expedidos há mais de 30 anos. Dois dos alvos desses processos foram localizados após o g1 questionar a polícia sobre o não cumprimento das ordens (saiba mais).

Segundo o CNJ, do total de mandados em vigor até o dia 19 de novembro, 77% são de natureza penal. A maioria desses mandados (58%) refere-se a cumprimento provisório. Ao todo, o país possui 108.593 pessoas procuradas para cumprir condenações definitivas e 149.728 para cumprir mandados provisórios.

Para especialistas, a existência de mandados em aberto há tanto tempo decorre, sobretudo, da falta de integração entre as forças de segurança pública.

“Isso assusta, de fato, porque é um número grande”, afirma Roberta Fernandes, pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). “A segurança pública brasileira não aprendeu ainda a trabalhar de forma integrada.”

Para Michel Misse, professor de pós-graduação em Justiça e Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública, apresentada pelo governo Lula (PT) em outubro, é positiva nesse sentido, ao promover a integração das polícias.

Uma das mudanças almejadas pelo governo com a PEC é padronizar boletins de ocorrência, mandados de prisão e certidões de similar ao que ocorre no Sistema Único de Saúde (SUS), estabelecendo uma linguagem unificada entre as forças policiais.

“O que a gente tem são crimes elucidados onde o problema é que você não encontra a pessoa para ela cumprir a pena”, diz Misse.

O Ministério da Justiça foi procurado, mas não se manifestou. O g1 não conseguiu contato com as defesas dos procurados citados nesta reportagem.

Procurados viviam em cidade vizinha ao crime, mas em outro estado

João Ferreira dos Santos e João Maria Ferreira eram procurados por um homicídio cometido em 1991 em Timon, cidade maranhense na divisa com o Piauí.

Conforme o relatório policial, após beberem, os dois — à época, com 23 e 34 anos, respectivamente – começaram a xingar a vítima que, ao questioná-los, foi agarrada e esfaqueada 17 vezes, na frente da mulher e da filha.

Os autores fugiram, a polícia concluiu as investigações e o Ministério Público denunciou ambos os irmãos pelo assassinato. Em 1993, a Justiça do Maranhão determinou que fossem presos preventivamente para serem julgados. Os réus, entretanto, nunca foram encontrados.

Na quarta-feira (13), após o g1 questionar a Polícia Civil do Maranhão sobre o porquê de os mandados de prisão ainda estarem abertos, João e João Maria foram localizados em Teresina, cidade vizinha de Timon. João, que trabalha como estivador, foi preso. João Maria não foi detido por estar internado em razão de um acidente vascular cerebral, segundo as autoridades maranhenses.

O delegado-geral do Maranhão, Almeida Neto atribui a demora no cumprimento de mandados judiciais a falta de estrutura das polícias.

“Atualmente, temos 300 mil mandados de prisão para cumprir no Brasil e, quando alguém está foragido, o dever da prisão não é só da polícia, mas de todo o sistema de Justiça. Mas a estrutura disponível pela polícia [para cumprir os mandados] também pode contribuir”, afirmou.

A falta de integração é mais evidente em casos nos quais os procurados vivem em estados diferentes de onde são investigados, apontam especialistas. Como o g1 mostrou, 10 procurados da Justiça em investigações criminais de um estado lançaram-se candidatos em outro estado nas eleições 2024.

Misse aponta que, por falta de integração, mesmo pessoas que eventualmente já estão detidas podem constar, ainda, como procuradas.

“O que acontece é que, às vezes, você tem um mandado de prisão aberto no Rio de Janeiro, mas a pessoa que você quer prender está presa no Paraná. E essa informação não está disponível porque não há um sistema nacional integrado de informações”, explica o especialista.

Presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), Rodolfo Laterza, explica que, sem um banco de dados integrado, quando a Justiça de um estado expede um mandado de prisão contra alguém que reside em outro, a ordem não é enviada diretamente para todas as delegacias. Em vez disso, ela segue para um departamento específico dentro das polícias civis, conhecido como Polinter.

Prisão é difícil mesmo em caso de condenação, diz delegado

João e João Maria ainda não foram julgados. O mandado de prisão contra eles é preventivo, ou seja, não se destina ao cumprimento de uma sentença.

No entanto, mesmo em casos de condenação, há dificuldades para efetuar a prisão, afirma Rodolfo Laterza, presidente da Adepol.

“Infelizmente, não há rastreamento adequado de determinados criminosos. Quando eles são submetidos a uma sentença penal condenatória e é decretada a prisão, isso é registrado no sistema [judiciário] e, muitas vezes, fica por isso mesmo”, afirma Laterza.

Antônio Afonso Coelho é alvo de um mandado expedido em 1990 por matar um homem a tiros de espingarda no ano anterior em Baião (PA).

Embora a ordem seja preventiva, Coelho já foi condenado e a sentença — 22 anos em regime fechado — se tornou definitiva em novembro de 2012.

Para Laterza, os casos mais graves são os que trazem mais dificuldades para localização do suspeito — os quatro mandados de prisão com mais de 30 anos são de homicídio.

“Criminosos normalmente envolvidos em condutas violentas, como homicídio e latrocínio, são os mais complexos. Geralmente, são indivíduos com comportamento reiterado e habitual de delinquência, não possuem endereço fixo e muito menos uma profissão estável”, afirma o presidente da Adepol.

Natural de Uruburetama (CE), José de Ribamar Moreira é alvo de um mandado de prisão preventiva expedido há 31 anos, suspeito de um homicídio ocorrido em 1991 em Medicilândia. À época, ele tinha 54 anos e agora, tem 87. Até a publicação desta reportagem, a ordem seguia vigente.

Um estudo recente do Instituto do Paz mostrou que 6 a cada 10 homicídios ficam sem solução no Brasil. De 22.880 assassinatos que aconteceram no ano de 2022, apenas 8.919 geraram denúncias criminais até o fim de 2023.

Especialista alerta para elevada população carcerária: ‘Um milhão de presos’

Michel Misse chama a atenção para o impacto que o cumprimento de todos os mandados teria sobre a superlotação dos presídios brasileiros.

Segundo dados do Ministério da Justiça, no primeiro semestre de 2024, o Brasil enfrentava um déficit de 174 mil vagas em presídios, com 763 mil detentos para 488 mil vagas disponíveis.

“Em termos quantitativos, nós já estamos com 800 mil pessoas presas ou em prisão provisória. O Brasil é a terceira população prisional do mundo, com estes outros, nós teríamos mais de um milhão de presos”, completa o professor.

G1