Além de prejuízos no aprendizado dos estudantes, a pandemia de coronavírus provocou impactos também na permanência de crianças e jovens na escola.
Indicadores oficiais de abandono escolar analisados pela reportagem revelam que, além de o problema ter aumentado na média do país, o abismo regional se intensificou.
Enquanto a taxa de abandono atingiu, no ano passado, 10,7% dos alunos de escolas públicas de ensino médio na região Norte, contra 2,6% no Centro-Oeste. Assim, a distância entre as duas regiões ficou em 8,1 pontos percentuais em 2021 –em 2019, antes da pandemia, essa diferença era de 5 pontos.
No ensino fundamental (que compreende do 1º ao 9º ano), os dados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) mostram uma situação mais estável, mas também com ampliação da desigualdade. O Norte teve uma taxa de 2,6% no ano passado, a mesma de 2019, mas o Centro-Oeste reduziu esse indicador de 0,8% para 0,5%.
A taxa média do Brasil de abandono nas escolas públicas de ensino médio era de 5,3% em 2019 e foi para 5,6% em 2021. É a primeira alta no indicador desde 2009. No ensino fundamental, ficou em 2,6%.
Esses índices indicam que 945 mil crianças e jovens abandonaram a escola no ano passado.
O Brasil é marcado por desigualdades educacionais históricas. Do ponto de vista regional, Norte e Nordeste apresentam indicadores piores –estudantes negros, indígenas, alunos com deficiência e os mais pobres, em geral, são os principais prejudicados, embora os dados oficiais sobre a pandemia ainda não permitam análises mais definitivas.
Com a pandemia, a rotina da jovem Monica Fonseca, 17, passou a incluir o auxílio aos familiares mais novos na lição de casa, em Fercal, região administrativa do DF (Distrito Federal). Na casa, vivem ela, a mãe Verônica, o padrasto e mais 10 crianças e jovens, entre irmãos e primos.
Em uma manhã de outubro passado, quando as aulas no DF ainda estavam no modelo híbrido, Monica ajudava nas tarefas escolares com o apoio de uma pequena lousa, afixada na sala de casa. Apesar de fazer o papel de professora, ela própria abandonou os estudos após o fechamento das escolas e passou a se dedicar à venda de sorvetes em uma rua do bairro.
“Não queria mais estudar esse ano, daí eu parei. Estava na minha mente que não ia valer a pena”, conta Monica. A dificuldade de acompanhar os estudos pela internet e a impressão de que não aprendeu nada colaboraram com a decisão. “Talvez eu até conseguiria passar de ano, mas passaria de ano sabendo pouco, né”.
A família é uma das retratadas no documentário “Desconectados”, que a Folha lança na próxima semana. A pré-estreia do longa-metragem, que teve parceria com o Instituto República, será no Espaço Itaú de Cinema nos dias 22, em São Paulo, e 24, em Brasília. As sessões serão às 20h com distribuição gratuita de ingressos no local uma hora antes.
“Desconectados” retrata o percurso entre o fechamento e o retorno à escola. Na tela, além do drama do abandono, estão as consequências emocionais e a persistência de pais e educadores.
Uma realidade cujos efeitos ainda se prenunciam.
O filme surge um ano após o retorno presencial às escolas, com um diagnóstico precário sobre atual cenário educacional, e às vésperas das eleições. Lidar com os efeitos da pandemia na educação será um dos grandes desafios dos políticos eleitos em outubro.
A coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, diz que os retrocessos nesses indicadores comprometem o atendimento das metas do PNE (Plano Nacional de Educação).
“A desigualdade aumentou na pandemia, uma desigualdade de raça, socioeconômica e regional. Norte e Nordeste ficaram de novo mais longe, especialmente por conta da falta de infraestrutura que já existia antes da pandemia”, diz ela. “Foi algo que não mudou substancialmente apesar de ter tido tempo para as escolas serem reformadas e haver recursos parados”.
Também caíram os investimentos na área nos níveis federal, estadual e municipal.
Pesquisas mostraram que, no geral, a oferta de ensino remoto foi desigual e com baixa eficiência. A maioria das escolas públicas teve de apostar em atividades impressas e contatos via WhatsApp entre professores e alunos.
Os cerca de 38 milhões de alunos de escolas públicas enfrentaram 287 dias de escolas fechadas entre 2020 e 2021, segundo o Inep. A média equivale a quase um ano letivo e meio.
A pandemia foi marcada por uma ausência do MEC (Ministério da Educação) do governo Jair Bolsonaro (PL) no apoio às redes públicas de ensino. Questionados, MEC e Inep não responderam.
O país foi um dos recordistas de tempo sem aulas presenciais. “Se a gente somar alunos, professores e profissionais da educação diversos, são 50 milhões de pessoas. Então ter retornado no ápice da pandemia, significaria movimentar diariamente 50 milhões de pessoas”, avalia, também no documentário, o pesquisador João Marcelo Borges.
“Se eu adicionar aqui um responsável só, não estou contando pai e mãe e já estou assumindo que os irmãos estão aqui nessa conta, são 100 milhões de pessoas. É metade da população do Brasil diretamente envolvida com a educação básica”, completa ele.
Em agosto de 2021, o CNE (Conselho Nacional de Educação) recomendou, em parecer, que as redes não reprovassem os alunos sem aulas presenciais. As taxas de abandono colhidas pelo Inep mostram uma forte queda na reprovação em 2020 e índices ainda abaixo da média no ano passado.
Pesquisas educacionais mostram que a reprovação é o primeiro passo do abandono. Dessa forma, alunos retidos têm maior chance de largarem os estudos.
Levantamento da reportagem com as secretarias estaduais de educação do país mostra que as redes de ensino têm se atentado ao problema. Das 21 pastas que responderam à reportagem, 20 informaram ter projetos de busca ativa de alunos com ausências persistentes.
Somente o Distrito Federal, onde mora a Mônica e a família, não informou ter iniciativa nesse sentido entre as secretarias que responderam aos questionamentos.
Em Santa Catarina, por exemplo, o governo informou que “mais de 2.000 estudantes retornaram às escolas da rede estadual no ano letivo de 2021” pela busca ativa. As escolas públicas da região Sul, entretanto, foram as que tiveram maior alta nas taxas de abandono de 2019 a 2021, passando de 4,9% para 6,6% no ensino médio.
Também na região Norte há estados com iniciativas positivas na busca por alunos evadidos. O Tocantins informou à reportagem que conseguiu garantir que 12.684 estudantes “renovassem o vínculo educacional” em 2020 por meio da busca ativa e outras estratégias.
“O enfrentamento às desigualdades está relacionado a uma série de políticas voltadas para isso, uma política homogênea não dá conta de garantir”, completa Andressa Pellanda.
Fonte: Folhapress (Paulo Saldaña e Pedro Ladeira)