Criada em 2012, a Lei de Cotas das instituições de ensino federal (Lei 12.711/2012) perderá a validade em 2022, caso não seja renovada pelo Congresso.
A revisão da lei sob o governo Jair Bolsonaro (sem partido) – que é antipático a ela e nega o racismo como um problema estrutural do Brasil – é fator de preocupação para o movimento negro, que teme retrocesso numa política amplamente avaliada como bem sucedida por estudiosos da educação e de políticas públicas.
Além disso, o processo de revisão, previsto no artigo sétimo da própria lei, deve acontecer em pleno ano eleitoral, quando a polarização política estará ainda mais exacerbada.
“Não só temos um temor como, justamente por conta disso, já estamos, junto com outras instituições, criando uma grande frente de defesa da renovação da Lei de Cotas”, diz José Vicente, reitor e fundador da Universidade Zumbi dos Palmares.
Sociólogo e advogado, Vicente lembra que as cotas da magistratura, do Ministério Público e do serviço público federal também estão subordinadas à mesma legislação.
“Na hipótese de a lei não ser prorrogada, nós teríamos todas as políticas de cotas canceladas no nosso país, o que seria um absurdo, uma perda inominável, tendo em vista que as cotas não conseguiram dar conta ainda do que elas se propuseram”, afirma o reitor.
“Dos 20% de juízes negros que deveriam estar preenchendo as cotas do Judiciário, não chegamos ainda a 5%. Isso acontece também no Ministério Público, nos concursos federais e, mesmo na universidade, a ação afirmativa chegou aos bancos escolares, mas ainda não alcançou o corpo docente, a estrutura de gestão operacional do ambiente universitário e a ciência, nas bolsas de pós-graduação de mestrado e doutorado.”
Vicente avalia que a conjuntura atual impõe um desafio adicional à revisão da política.
“Se a luta já estava difícil antes, agora com Bolsonaro e companhia vai ser uma pedreira”, avalia.
“A discussão pode perder seu caráter técnico para se transformar numa bandeira política, entrando para esse ambiente de conflito e confronto. Esse é um grande risco. E aí, os negros sozinhos não têm condição de fazer a defesa. Será preciso um grande concerto nacional, uma trincheira de defesa muito grande, que vai exigir esforço extraordinário.”
Pandemia e a juventude negra
Vicente, de 61 anos, é ele mesmo um exemplo do papel da educação na ascensão social dos negros no Brasil.
Nascido em Marília, no interior paulista, numa família de seis irmãos sustentada pela mãe boia-fria, cresceu na lavoura. Vendeu limão e paçoca para ajudar em casa, foi soldado da Polícia Militar e estudou direito para tornar-se delegado. Anos depois, de volta aos bancos escolares, no curso de sociologia, tomou contato com o movimento negro.
Dessa experiência, surgiu um cursinho preparatório para formação de estudantes para entrar na USP (Universidade de São Paulo), que seria o embrião da Unipalmares. Fundada em 2004, a instituição foi inspirada pelas universidades negras americanas, onde estudou, por exemplo, a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, egressa da Universidade Howard.
O reitor avalia que, passado quase um ano de pandemia, já está evidente que a crise sanitária afeta os estudantes de maneira distinta.
“Os negros e os estudantes negros sofreram de uma forma mais intensa os impactos da pandemia”, afirma Vicente.
“Isso por dois motivos. O primeiro é que os negros, em regra, estão nos empregos mais fragilizados, na informalidade e nas pequenas e médias empresas. Foi justamente nesses espaços que a pandemia fez um ‘strike’, produziu um dano terrível. Então eles foram os primeiros a ficar sem empregos e sem geração de renda.”
O segundo ponto, avalia o reitor, é que esse público, por suas limitações econômicas, tem mais dificuldade de ter acesso de qualidade à internet para realizar seus estudos.
“Mesmo estando em casa, eles se defrontam com diversas outras responsabilidades e limitações, que resultam num grau de aprendizado menos efetivo. Por esse conjunto de fatores, o jovem negro acaba sendo penalizado de uma forma muito mais intensa.”
G1 PI